domingo, outubro 30, 2005
sábado, outubro 29, 2005
Poema nu
Em gritos de nudez fomos feitos. Entre lágrimas de nudez morreremos. No entretanto, o corpo hiberna na condenação ao pudor desejado. Fecha-se como um livro de páginas censuradas. Como uma ilha de ninfas amaldiçoadas, castra-se. Como o medo que se esconde num cálice de fogo gelado.
Escrevo-me nua. Tal como este poema. Sou princípio de lágrima. O poema, esse, desconhece a nudez das cinzas.
Lê-me como palavra. Oferece-me a eternidade.
sexta-feira, outubro 28, 2005
quinta-feira, outubro 27, 2005
Escavações
Escavo os destroços do meu espaço
Feito de carne e ossos triturados.
Desenterro-me de velhas gavetas
Cheias de restos rasgados e magoados.
Nos vestígios do tempo em que me faço
Ouvem-se gritos de janelas lacrimantes
Jorram das paredes de quartos já fechados
Lágrimas de prazer em soluços sufocantes.
Feito de carne e ossos triturados.
Desenterro-me de velhas gavetas
Cheias de restos rasgados e magoados.
Nos vestígios do tempo em que me faço
Ouvem-se gritos de janelas lacrimantes
Jorram das paredes de quartos já fechados
Lágrimas de prazer em soluços sufocantes.
quarta-feira, outubro 26, 2005
No País dos Sacanas
Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glandulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.
Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?
Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.
Jorge de Sena, 10.10.1973
Uma simples, mas sentida dedicatória ao meu amiguinho Jerico
terça-feira, outubro 25, 2005
No teu poema
És esta página em que me espalho
Sou só vocábulos e assim me acolhes
Em ti enterro as sílabas do que valho
Apago todo o vazio para que me olhes.
Sou a tinta que escoa e em ti hesita
No seio das minhas palavras te sacias
De bruços sobre o que em ti medita
Sou um novo glossário que acaricias.
Sou ainda o vento que te sopra a folha
Para que neste poema não haja despedidas.
domingo, outubro 23, 2005
sábado, outubro 22, 2005
Fragmentos de Tempo
I
Cansada do teu solo vulcânico
Lentamente a minha lava arrefece
II
Trago a minha alma encharcada
De enfrentar os teus temporais
III
Tenho o meu cais isolado
Pelos perigos do teu nevoeiro
IV
Das minhas lágrimas faço versos
Até que um dilúvio te afogue no poema
V
É de vento a tinta com que escrevo
E te empurra para fora desta página
quarta-feira, outubro 19, 2005
A estátua
De repente, o sol encharca-se de chuva. Atravesso, então, a rua e abrigo-me debaixo de uma árvore. É quando o avisto. Está sentado num banco de tábuas gastas pelo atropelo dos anos. Indiferente ao vento que sopra gotas de água contra si, olha fixamente a estátua à sua frente. É uma figura flagelada pelo musgo do tempo, por dejectos dos pássaros e mutilada pela erosão do cenário que lhe foi destinado.
Mas o peso da chuva descobre-lhe a nudez. Chuva que pára. O sol reaparece e avança sobre os seus seios, como se aprendesse o caminho. Mergulha sobre o seu ventre e deixa-se escorrer pelas curvas das suas coxas e nádegas. Noto que toda a luz do dia disputa o seu rosto e interrogo-me: "Em que deusa o teu criador se inspirou?
Mas o peso da chuva descobre-lhe a nudez. Chuva que pára. O sol reaparece e avança sobre os seus seios, como se aprendesse o caminho. Mergulha sobre o seu ventre e deixa-se escorrer pelas curvas das suas coxas e nádegas. Noto que toda a luz do dia disputa o seu rosto e interrogo-me: "Em que deusa o teu criador se inspirou?
Nisto reparo no banco vazio e uma voz interpela-me: - Cativa, não cativa? Imagine, agora, o modelo. Como esquecê-la? As pedras também morrem, não morrem?
terça-feira, outubro 18, 2005
Da tua tela
Pintei nos teus olhos o azul
que uma ave me trouxe do céu
Desenhei o teu sorriso no verde
das marés de algas perfumadas
Deitei sobre o teu ventre o vermelho
do pôr-do-sol penetrando o mar
Esgotei tantas latas de tinta
numa tela que não merece a côr.
que uma ave me trouxe do céu
Desenhei o teu sorriso no verde
das marés de algas perfumadas
Deitei sobre o teu ventre o vermelho
do pôr-do-sol penetrando o mar
Esgotei tantas latas de tinta
numa tela que não merece a côr.
Só um pedido
Serei as raízes que sustentarão a tua árvore
Serei a seiva que te alimentará por dentro
Serei o vento que dançará com o teu tronco
E trará os pássaros para te namorar os ramos
De uma lágrima tua farei beijos de chuva
Em troca, meu amor, só um pedido:
Que me dês abrigo no colo da tua sombra
das ruínas desta terra massacrada e sangrenta.
Serei a seiva que te alimentará por dentro
Serei o vento que dançará com o teu tronco
E trará os pássaros para te namorar os ramos
De uma lágrima tua farei beijos de chuva
Em troca, meu amor, só um pedido:
Que me dês abrigo no colo da tua sombra
das ruínas desta terra massacrada e sangrenta.
sábado, outubro 08, 2005
O teu retrato
Achei-te embalsamado num retrato que havia guardado no fundo de uma gaveta esquecida pelo tempo. Gastei-te com a ternura dos meus dedos até os sentir descarnarem-se.
Nascerá um poema ou um cardo?
Estás amarelecido, bafiento, boloroso, um coágulo de sangue esborratou os teus lábios e uma mancha de morte laminou-te o sorriso. Com a raiva de uma lágrima apago a dedicatória de letrinhas desenhadas a azul sobre o colo das tuas mãos. Mãos que faço minhas e com que te rasgo lentamente em mil pedaços de náusea. Sacrifico-te num altar de chamas. Enterro as tuas cinzas nas raízes putrefactas de uma árvore a quem roubaram a memória. Rio-me para os vermes a quem servirás de alimento.
Nascerá um poema ou um cardo?